Trabalhadores achados em condições análogas à escravidão serão indenizados
Os acontecimentos descritos parecem mais um roteiro de filme de guerra ou terror, mas ocorreram em uma fazenda de café na região de Aimorés, na fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo. Durante um julgamento na 3ª Vara do Trabalho de Governador Valadares, o juiz Walace Heleno Miranda de Alvarenga teve que lidar com um caso alarmante: os trabalhadores eram punidos com chicotadas e recebiam drogas como forma de pagamento.
Flagrante de trabalho escravo feito pelo auditor fiscal do Trabalho, Sérgio Carvalho
As bebidas alcoólicas e drogas fornecidas eram também vendidas a trabalhadores dependentes químicos como uma forma de controle. Além disso, relatos mencionaram rituais macabros realizados no alojamento, onde um crânio foi encontrado. Nesse contexto, o juiz condenou dois fazendeiros de Aimorés por submeterem trabalhadores a condições análogas à escravidão.
A condenação obriga os réus ao pagamento de R$ 2 milhões em indenização por danos morais coletivos, considerando a ofensa à sociedade. Além disso, cada trabalhador resgatado deverá receber R$ 50 mil por danos morais individuais.
A decisão foi resultado de uma fiscalização que resgatou sete pessoas em condições degradantes. Os réus também foram responsabilizados a garantir condições dignas de trabalho, sob pena de multa pelo descumprimento.
Entenda o caso
O Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou com uma ação civil pública contra os réus, acusando-os de submeter trabalhadores a situações equivalentes à escravidão em uma fazenda em Aimorés/MG. As denúncias revelavam jornadas exaustivas, condições de habitação e trabalho extremamente precárias, vigilância armada e restrições de liberdade dos trabalhadores.
No procedimento de fiscalização, em janeiro de 2023, uma força-tarefa composta por auditores-fiscais do trabalho, promotores e policiais constatou diversas irregularidades na fazenda de café. Ao chegarem, foram recebidos pelo capataz, que admitiu ser responsável pelos trabalhadores, mas não conseguiu apresentar um contrato formal. Um dos réus estava presente, mas fugiu ao perceber a chegada da equipe. Posteriormente, seu advogado compareceu para resolver as rescisões dos trabalhadores. Durante a operação, sete trabalhadores foram resgatados em estado de exploração e registrados como beneficiários de seguro-desemprego. Os réus pagaram as verbas rescisórias durante a ação.
A Polícia Federal continuou as investigações e coletou provas que confirmaram um esquema de servidão por dívidas e exploração ilegal de mão de obra. Em junho de 2024, o MPT ajuizou a ação civil pública, solicitando indenizações por danos morais individuais e coletivos.
Castigo físico e terror psicológico
Ao analisar as evidências, o juiz verificou que os trabalhadores viviam em alojamentos sem as mínimas condições de existência, como ventilação, saneamento e água potável. Relatos indicaram jornadas de trabalho desgastantes, manuseio de agrotóxicos sem proteção, violência física, e controle por meio de dívidas e ameaças.
“As fotografias que integraram os relatórios demonstram claramente a situação degradante imposta aos trabalhadores na propriedade dos réus, os quais se alojavam em locais sem as condições mínimas de higiene, segurança e habitabilidade, o que foi verificado de forma flagrante pelo grupo de fiscalização e resgate”, pontuou o juiz.
“É evidente que essas condições de trabalho violam severamente os direitos sociais mínimos de qualquer ser humano em uma relação de trabalho subordinada, ofendendo diretamente sua dignidade”, acrescentou.
Dados do relatório policial indicam uma investigação sobre possível envolvimento do capataz em dois homicídios, incluindo a morte de um trabalhador da fazenda em 12/1/2023. Segundo a apuração, o capataz ofereceu-se para levar o trabalhador a uma consulta médica, mas, após entrar no carro do proprietário da fazenda, o corpo do trabalhador foi encontrado na zona rural de Mutum (MG). Para o juiz, essa situação evidencia a potencial periculosidade do capataz e suas numerosas ações ilícitas em relação aos trabalhadores.
Durante a fiscalização, os trabalhadores relataram atos de violência e rituais conduzidos pelo capataz e sua esposa. Uma prática particularmente perturbadora envolvia um espaço destinado a rituais religiosos, onde um crânio foi encontrado. Os trabalhadores afirmaram que o capataz utilizava esse local para realizar cerimônias que incluíam castigos físicos, como chicotadas.
Um relato indicou que o capataz marcava as costas dos trabalhadores com um símbolo em formato de “Z”, atribuído à entidade “Zé Pelintra”, associada à religião dele. De acordo com os relatos, o capataz exibia essas marcas durante os rituais, intensificando o clima de medo e submissão entre os empregados.
A equipe da força-tarefa encontrou o crânio no local dos rituais, junto com outros objetos e imagens relacionados. Embora não se tenha confirmado se o crânio era humano, a descoberta gerou grande impacto durante a fiscalização. Tanto o capataz quanto sua esposa não apresentaram explicações satisfatórias sobre a origem do objeto.
Esses rituais, que ocorreram em meio a agressões e humilhações, agravaram ainda mais as condições de trabalho, criando um ambiente de terror psicológico e físico. Isso reforçou a evidência de que os empregados eram mantidos sob rigoroso controle e constante ameaça, caracterizando assim o trabalho em condições análogas à escravidão.
Ciclo de dependência econômica e psicológica
De acordo com o relatório da força-tarefa, os trabalhadores viviam em um ciclo de dependência econômica e psicológica imposto pelo capataz e pelos fazendeiros. Mantidos em condições precárias, eram submetidos a um sistema de dívidas que os impedia de deixar a propriedade.
Os salários prometidos raramente eram pagos integralmente, sendo frequentemente reduzidos por descontos abusivos. Produtos básicos, como botas e papel higiênico, eram vendidos a preços exorbitantes, descontados diretamente das remunerações. Bebidas alcoólicas e drogas também eram fornecidas, e seus altos preços contribuíam ainda mais para a dívida dos trabalhadores.
Em certas ocasiões, as drogas eram oferecidas gratuitamente, como pagamento pelos serviços prestados, enquanto em outros momentos eram vendidas a dependentes químicos como maneira de forçá-los a permanecer na fazenda. “É alarmante que alguns trabalhadores tenham se identificado como dependentes químicos, quadro que exacerbava seu endividamento, criando uma situação de servidão por dívidas”, observou o magistrado.
Ele enfatizou que a prática de fornecer bebidas e drogas aos trabalhadores como forma de pagamento é ilegal, de acordo com o artigo 458 da CLT. Em todas as situações, muitos trabalhadores não recebiam dinheiro ao final do mês, ficando completamente dependentes dos empregadores para adquirir os bens necessários. Denúncias revelaram que, quando solicitavam adiantamentos, recebiam montantes menores do que aqueles anotados como dívida, criando uma situação de servidão por dívida que impedia a quitação dos débitos e os mantinha presos à propriedade.
Segundo o relatório elaborado pela Polícia Federal e a análise dos materiais apreendidos nas residências dos réus e do capataz, o juiz constatou “o registro de dívidas dos trabalhadores resgatados na operação com valores superiores aos que eram efetivamente pagos por seus serviços”.
A dependência se intensificava por meio de violência psicológica e física. Ameaças e punições impediam os trabalhadores de questionar as condições ou tentar deixar a propriedade. A combinação da falta de opções econômicas com o controle exercido pelos senhores resultou em uma exploração contínua e desumana.
O juiz classificou o caso como uma forma de escravidão moderna. “Embora o Brasil tenha abolido formalmente a escravidão em 1888, com a Lei Áurea, há práticas cotidianas no mundo do trabalho que desrespeitam a dignidade humana sob o disfarce de uma relação de trabalho”, concluiu.
Fonte: Com informações do TRT-Minas Gerais