Raiva de futebol | Mailson Furtado

Foto: Mateus Lotif/Fortaleza EC
Bola de futebol na marca de escanteio no campo

Enquanto meu pai, ainda criança, escondia-se com o rádio enrolado em um lençol, tentava evitar a fúria de meu avô, que não suportava ver seus filhos perdidos na obsessão pelo futebol. Ele jamais imaginou que essa paixão invadiria seu lar, preenchendo a mente de seus três filhos.

Meu avô, quando jovem, morava no interior de Reriutaba e, após economizar por dois anos do seu trabalho no roçado, decidiu trocar suas economias por um bilhete de trem que o levaria de Amanaiara a Camocim. De lá, embarcou em um barco, navegando por quase um mês em direção ao Rio de Janeiro.

Com uma promessa de emprego de um conhecido de um amigo, ele seguiu o destino de muitos e ali se estabeleceu — certamente assombrado com a imensidão do mundo, muito diferente do sertão que conhecia.

Era junho de 1950 e não havia outro assunto na capital federal a não ser o retorno da Copa do Mundo, após o longo intervalo da Grande Guerra. O Brasil seria o anfitrião, preparado para uma grande festa no Maracanã, que se preparava para receber a seleção brasileira em sua busca pelo primeiro título mundial.

Embora meu avô tivesse ouvido falar de futebol enquanto ainda estava no sertão, pouco pôde ver sobre o esporte. Agora, na vibrante cidade grande, ele não tinha como ignorar a febre que tomava conta das ruas naquele início de inverno.

Cada jogo atraía multidões, as filas se estendiam por quarteirões e a cidade parecia em festa contínua. Dia após dia, a expectativa aumentava para o que todos acreditavam ser inevitável: o título mundial para o Brasil.

Com a euforia ao seu redor, mesmo sem entender completamente, meu avô não queria ser o único a não se empolgar. E assim, ele celebrou cada jogo, mesmo na distância, por meio das conversas com novos amigos.

Na quinta-feira, 13 de julho, mais de 150 mil espectadores assistiram ao jogo em que o Brasil derrotou a Espanha por 6 a 1. Agora, bastava um simples empate no domingo contra o Uruguai para que a vitória fosse certa. Quem poderia duvidar disso?

A alegria estava no ar, até que… todos conhecem o trágico desfecho daquele domingo.

Meu avô também sentiu a dor da derrota. Ao deixar o trabalho, encontrou as ruas desertas, sem vibração, enquanto crianças, adultos, homens e mulheres compartilhavam uma angustiante sensação coletiva de perda.

No meio daquela desilusão, ele ergueu a cabeça e decidiu, ali mesmo, se afastar do futebol — aquela seria sua última partida. Dos 23 aos 87 anos, não sentiu mais vontade de participar.

Ainda naquele ano, ele retornou ao sertão, repetindo essa triste história ao longo dos anos.

Anos depois, com sua família estabelecida, mesmo tentando ignorar, ele fingia não ouvir os gritos abafados de gol de cada um dos seus filhos, enquanto o rádio permanecia envolto em um lençol. Ele não queria ser o responsável por sufocar essa paixão nos meninos, afinal, por quase um mês, ele soube o que era amar o futebol. Como poderia explicar tudo isso?

Mariana Beltrão

Sou redatora, revisora e tradutora de textos, formada em Letras e em Filosofia, estou sempre em busca de conhecimentos. Atualmente escrevo para o portal Folha de Parnaíba, sempre buscando as últimas notícias para os leitores.

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