O curador à casa torna
No último dia da Bienal de Veneza, em 24 de novembro de 2024, Adriano Pedrosa caminhava pelo Pavilhão Central do evento. Discreto, vestia preto dos pés à cabeça, coberta por um boné. Os derradeiros visitantes passavam pelo brasileiro sem saber que se tratava do curador responsável pela Bienal. Pedrosa desfrutava do anonimato e conversava com um amigo, em frente a uma seção histórica dedicada a retratos. Lá estavam obras de brasileiros notáveis, como Candido Portinari, Emiliano Cavalcanti e Yêdamaria, e de outros artistas do chamado Sul Global, como a mexicana María Izquierdo e o sul-africano Gerard Sekoto.
Retratos são um gênero muito presente nas exposições organizadas por Pedrosa. Já apareciam, 25 anos atrás, na mostra Fricciones, realizada por ele e pelo curador Ivo Mesquita no museu espanhol Reina Sofía, em Madri. Em São Paulo, onde desde 2014 Pedrosa atua como diretor artístico do Masp (Museu de Arte de São Paulo), os retratos tiveram papel de destaque nas exposições coletivas Histórias afro-atlânticas, de 2019, e Histórias brasileiras, de 2023. Uma escolha frequentemente elogiada pela crítica especializada. Holland Cotter, editor-chefe de artes visuais do New York Times, escreveu que as Histórias afro-atlânticas eram “uma reunião tão variada em humor, rica em novas informações e sutil em suas visões críticas sobre a alteridade, que seria adequada para ser transportada intacta por via aérea para viagens internacionais”.
Na Bienal de Veneza, a receptividade não foi a mesma. A seção de retratos foi um dos pontos mais lembrados nas resenhas que fustigaram Pedrosa, criticado por aquilo que alguns jornalistas consideraram um excesso de didatismo e politização. O conjunto de pinturas tinha, segundo a descrição oficial do evento, o objetivo de investigar “como a figura humana foi explorada de inúmeras maneiras diferentes por artistas no Sul Global, refletindo sobre a crise de representação em torno dessa figura, algo que marcou grande parte da arte no século XX, levantando ainda outras questões: quem poderia ser representado, por quem e como?”
“Acabei de passar uma semana vagando por Veneza, uma cidade com mais de 250 igrejas, e onde me deparei com o catequismo mais doutrinário? Nas galerias da Bienal”, escreveu Jason Farago, crítico de artes do New York Times, em artigo de abril de 2024. A exposição, segundo ele, recaía em um certo moralismo, mas isso não era o pior: “O verdadeiro problema é como ela tokeniza, essencializa, minimiza e rotula artistas talentosos.” No Le Monde, o crítico Harry Bellet recorreu à ironia: “Dos 331 artistas selecionados, cerca de cem nunca haviam sido expostos em Veneza, como mostram com orgulho os cartazes colocados perto de suas obras: olhando para eles, em muitos casos, entendemos o porquê…” J.J.Charlesworth, na revista ArtReview, escreveu que, para ele, “política e estética não coincidem necessariamente”.
Pedrosa conversou com a piauí enquanto caminhava pela Bienal. Rebateu a crítica de que, no afã de destacar artistas do Sul global, deu pouca atenção à qualidade das obras. À sua frente, estavam pinturas do casal de artistas Jewad Selim (1919-1961) e Lorna Selim (1928-2021), figuras notórias do movimento modernista iraquiano. “Muitas pessoas acostumadas a frequentar o circuito Nova York-Paris notam neles só uma derivação picassiana, o que para mim não é um problema. Continuo achando que são trabalhos muito relevantes”, disse o curador, como se respondesse aos críticos. Depois explicou que, deparando-se com impasses na produção da Bienal, teve de fazer escolhas: “Eu queria trazer uma paisagem do [pintor uruguaio] Torres García, mas não foi possível, então eu trouxe Retrato de VP (1941).”
Ao questionamento de que a seleção de uma grande quantidade de obras produzidas por artistas já falecidos favoreceria o mercado secundário –responsável pela comercialização de obras que já passaram por uma transação anterior –, hipótese levantada pelo crítico Fabio Cypriano em texto publicado no site da Arte! Brasileiros, Pedrosa, respondeu: “Esses artistas não precisam que eu os ‘puxe’. As pessoas podem não saber, mas eles já são reconhecidos nos países onde nasceram ou trabalharam.” Citou como exemplos os peruanos Julia Codesido (1883-1979) e José Sabogal (1888-1956), além do egípcio Mahmoud Said (1897-1964).
Pedrosa saiu da sala por volta das 16 horas, a visitação na Bienal se encerrava às 18 horas. Um grupo de italianos chegou em seguida. O guia que os liderava passou batido por quase todos os retratos exibidos ali. Deteve-se apenas nas obras de artistas que já gozam de prestígio no circuito europeu. Ele destacou Frida Kahlo e apresentou Tarsila do Amaral como “a mãe do modernismo brasileiro”. Em seguida, deu o tour por encerrado e foi embora.
Adriano Pedrosa, de 60 anos, foi o primeiro curador latino-americano à frente da Bienal de Veneza, evento que existe desde 1895 e é um dos mais prestigiados do circuito das artes. A edição do ano passado foi intitulada Foreigners Everywhere – Stranieri Ovunque (Estrangeiros em toda parte). Este também era o nome de uma das obras que Pedrosa levou para Veneza, de autoria do duo Claire Fontaine, formado pela artista italiana Fulvia Carnevale e o britânico James Thornhill. “Não importa onde você esteja, você sempre é, no fundo, um estrangeiro”, dizia a descrição do evento. A ideia, segundo Pedrosa, tinha uma força especial em Veneza, “cidade cuja população original consistia em refugiados de cidades romanas”.
“Para mim, foi um saldo positivo”, disse o diretor artístico do Masp, ao receber novamente a piauí em 17 de abril, no prédio principal do museu paulistano. Seu escritório é espaçoso, tem vista para a Avenida Paulista, uma mesa de reunião com tampo de vidro no centro e uma estante repleta de livros. “Ainda que tenha havido críticas, a Bienal teve um efeito muito interessante. Às vezes demoram anos até você entender de fato o que vai acontecer, e como os artistas vão ser reconhecidos.”
Sua curadoria recebeu análises positivas, como um artigo de Sara Raza para a revista ArtForum. “Em Foreigners Everywhere”, escreveu a curadora e crítica de arte inglesa, “a marginalidade é posicionada como uma ferramenta crucial para a recusa, o que não é o mesmo que a não participação. Aqui, centralizar a alteridade significa dissolver intencionalmente a ideia do centro imaginário, que não se sustenta mais. O antigo pertencimento está morto; viva o despertencimento!” Alex Greenberger e Maximiliano Durón, do site ARTnews, argumentaram que a curadoria de Pedrosa não deve ser interpretada necessariamente como um gesto decolonial, mas como “um esforço para expandir o cânone e o campo de visão de todos que participam. Isso, por si só, é uma causa que não deve ser subestimada ou descartada.”
“Em geral, as críticas interessantes foram feitas por estrangeiros”, disse Pedrosa. “A Sara Raza é uma mulher que saiu de um local e foi para o outro. As pessoas que trafegam acabam tendo um pertencimento e uma simpatia maior.” Críticos como Jason Farago, continuou Pedrosa, pecam pelo etnocentrismo. “É uma visão colonialista, a verdade é essa. Os europeus e americanos, quando começam a olhar para outros modernismos, acham que é pálida cópia do que foi feito na Europa e nos Estados Unidos. Ou é derivativo, ou não tem qualidade.”
Apesar das críticas, a Bienal aumentou o prestígio de Pedrosa e deixou um legado material para o Masp: 29 obras exibidas em Veneza foram compradas e doadas ao acervo do museu paulistano. Uma outra – A cerimônia (2024), de Salman Toor – foi emprestada sob regime de comodato e consta como “promessa de doação”, o que significa que pode (ou não) ser integrada ao acervo do Masp em breve. O martelo deve ser batido somente no ano que vem.
As doações são fruto de uma viagem que levou noventa pessoas, entre elas conselheiros, diretores e patronos do Masp, a Veneza em abril do ano passado. Segundo a assessoria do museu, cada viajante arcou com as próprias despesas, e o passeio guiado durou cinco dias. O grupo recebeu tratamento especial: circulou pela Bienal na companhia de Pedrosa e sua equipe, composta pelas coordenadoras artísticas Amanda Pedrosa e Sofia Gotti, e compareceu a mostras paralelas, como uma retrospectiva de Willem de Kooning (1904-1997), uma das figura de proa do expressionismo abstrato, na Academia de Belas Artes de Veneza. Os viajantes também puderam conhecer pessoalmente alguns artistas.
As trinta obras doadas ao Masp não foram escolhas espontâneas dos doadores (entre eles, o casal Rose e Alfredo Setubal, CEO da Itaúsa, holding que detém a maioria das ações do Itaú Unibanco). Elas constavam numa lista montada por Pedrosa e outros curadores do museu. “A gente elegeu por volta de 35 obras que nos interessavam. Achávamos que elas tinham mais ressonância com o museu”, explicou o diretor artístico do Masp. “Também tínhamos um foco grande em artistas indígenas e artistas latino-americanos, porque afinal a América Latina é o nosso continente. Igualmente olhamos para artistas queer e vindos do continente africano.”
Felipe Hegg, um art advisor paulistano de 41 anos, fez parte da excursão. Desde 2016, ele é integrante do programa Jovem Patrono Masp, que busca incentivar jovens colecionadores a apoiarem o museu. Por regra, cada um deles deve doar ao menos 16.500 mil reais por ano à instituição, dinheiro que ajuda a custear todo tipo de atividade. Hegg e seu marido, William Heuseler, doaram ao Masp uma pintura de Dean Sameshima, americano de ascendência japonesa. A obra, feita com tinta acrílica, chama-se Anonymous Homosexual (2020) e custou 4.800 dólares – cerca de 28 mil reais. O jovem patrono não conhecia o trabalho de Sameshima até encontrá-lo pessoalmente no Arsenale, um dos espaços expositivos da Bienal. “Foi uma conversa relativamente superficial, mas que, ainda assim, mexeu muito comigo”, disse Hegg à piauí. “Eu sou gay, então nada faz mais sentido do que doar a obra de um artista queer. E, claro, a gente tem que ser realista: o museu sabe o quanto um jovem patrono pode doar. Eles têm a inteligência de apresentar o trabalho certo para cada um dos doadores.”
Das 29 obras doadas, 25 já estão devidamente alojadas no Masp. O traslado é uma operação complexa. Quando a Bienal acabou, a coordenadora do acervo do museu, Paula Coelho, viajou a Veneza e acompanhou a embalagem das obras, feita por uma empresa especializada nesse tipo de serviço. Cada uma delas foi acomodada numa caixa construída sob medida e depois transportada por barco até a Itália continental. Chegando lá, embarcaram num caminhão climatizado e com suspensão especial, que as levou até o aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, com um pernoite em Munique. As obras foram colocadas então num avião cargueiro e viajaram até o aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde já havia um funcionário do Masp aguardando-as. O desembaraço alfandegário foi feito por agentes contratados pelo museu e especializados em importação e exportação de obras de arte. Liberadas, as caixas foram postas em um novo caminhão e rumaram, enfim, para São Paulo.
O Masp não tem orçamento para compra de obras de arte, e portanto depende de doações de colecionadores ou dos próprios artistas. O conjunto de obras recém-chegado de Veneza inclui nomes em ascensão no mercado das artes, como Xiyadie, Julia Isídrez e Claudia Alarcón. Também estão lá o sul-africano Sabelo Mlangeni e o angolano Kiluanji Kia Henda, o que contribui para a formação, no Masp, de um pequeno núcleo de artistas contemporâneos africanos (o acervo do museu contava principalmente, até então, com obras de arte africana tradicional). Quatro fotos do boliviano River Claure, que teve um portfólio publicado na piauí em 2023, também foram adquiridas e passam a fazer parte do acervo do museu.
Uma das obras de maior destaque, contudo, é aquela que ainda não foi propriamente doada. A cerimônia, do pintor paquistanês Salman Toor, contém todas as características que o tornaram famoso: o verde predominante, os personagens de narizes longos e pontudos e a cena multifocal, que faz com que o olho do espectador, depois de enxergar o todo, se detenha em cada um dos núcleos que a compõem.
Toor, descrito como o “queridinho do mercado nova-iorquino” em uma matéria recente do site ARTNews, ganhou notoriedade nos últimos cinco anos. Fez duas exposições individuais no Whitney Museum, em Nova York, entre 2020 e 2021, e uma no Museu de Baltimore em 2022. Suas obras, desde então, se supervalorizaram. No leilão Phillips New Now, realizado em 2020 em Londres, a tela Liberty Porcelain (2012) foi vendida a 378 mil euros, o equivalente a 2,4 milhões de reais. Em outro leilão, realizado em dezembro de 2023, a tela Rooftop Ghost Party I (2015) saiu por 822 mil dólares, cerca de 4,7 milhões de reais.
Adriano Pedrosa explicou assim suas prioridades: “Se você olhar para o século XIX, começo do XX, o Masp tem uma forte coleção de arte internacional, sobretudo europeia. Quando chega no pós-guerra, a coleção se torna fortemente brasileira. E nas últimas décadas, antes da nossa gestão, ela ficou exclusivamente brasileira, o que gerou um desequilíbrio grande no acervo.” Como é difícil preencher as lacunas de obras internacionais, o museu tenta obtê-las com quem está perto. “Artistas de fora que participaram de exposições no museu viram uma prioridade para conseguir uma doação. Ou, a partir da doação, a gente faz uma exposição.”
Em 2026, disse Pedrosa, a programação do Masp será dedicada ao tema “histórias latino-americanas” e incluirá exposições do colombiano Abel Rodríguez e das argentinas La Chola Poblete e Claudia Alarcón. No ano seguinte, será realizada a aguardada exposição de Vincent Van Gogh, como parte do ciclo Histórias da Loucura e do Delírio. No acervo da instituição paulistana, há quatro obras do pintor holandês: A Arlesiana (1890), O Banco de pedra (1889), O Escolar (1888) e Passeio ao crepúsculo (1889-90). Em 2019, Pedrosa confirmou à Veja SP que já havia iniciado a solicitação dos empréstimos estrangeiros, dado a antecedência necessária para obtenção de um trabalho. “É algo que acontece com alguns poucos artistas no circuito de exposições de grande público. Van Gogh é um deles.”
Ao final da entrevista, agora, em 2025, Pedrosa diz não ter planos de sair do Masp tão cedo. “Eu espero ficar aqui 45 anos, como o [Pietro Maria] Bardi ficou”, disse. Depois deu uma risada, ele disse que era brincadeira. “Hoje em dia você não fica 45 anos em um museu. Isso não existe mais.”