“Não vou poder mais dirigir”
Logo nos primeiros dias de seu pontificado, Leão XIV anunciou ao superior da ordem dos Agostinianos, setor da igreja católica à qual ele pertence, que faria uma visita aos “irmãos”, que é como os agostinianos se referem uns aos outros. A sede da ordem fica num amplo edifício na Via Paolo VI, a poucos metros da entrada para a Casa de Santa Marta, local onde viveu Francisco e onde dormiram os cardeais durante o conclave, no Vaticano. A visita se daria durante o almoço, na terça-feira, 13 de maio. Nem todos os mais de quarenta irmãos foram chamados, por falta de espaço. Quem recebeu o convite foi orientado a agir com discrição, com máximo sigilo, sem comentar nada entre si. A visita não estava na agenda oficial do papa justamente para não atrair a atenção da imprensa.
Apesar da curta distância entre a sede dos agostinianos e o palácio apostólico, Leão XIV chegou num carro preto, acompanhado de outro veículo com seguranças. Como chefe de Estado, não poderá mais circular por Roma dirigindo seu Fiat Panda, como fazia até uma semana atrás. Um dos primeiros comentários que fez ao chegar ao almoço foi o de que terá de abrir mão de muitas coisas que aprecia, entre elas, seu carro. “Não vou poder mais dirigir”, comentou com os religiosos naquela tarde. (João Paulo II gostava de esquiar e às vezes o fazia escondido, quando ainda não tinha limitações físicas; Bento XVI era pianista profissional, mas teve de diminuir consideravelmente a prática ao virar papa; e Francisco era aficcionado por futebol, embora os compromissos não lhe permitissem acompanhar como antes seu time do coração, o San Lorenzo.)
O novo pontífice também avisou aos amigos agostinianos que não vai poder visitá-los com a frequência de antes, em razão dos compromissos que terá como papa. Mas que, quando vier, não deseja qualquer cerimônia ou cardápio especial. “Ele disse para apenas colocarem o aviso de que há mais um para o almoço”, conta o frei Leandro Carvalho, ecônomo (uma espécie de tesoureiro) do Colégio Internacional Santa Mônica, o colégio agostiniano de Roma. Leão morou por doze anos naquele edifício, período em que foi a autoridade máxima da ordem agostiniana. Nessa época, conheceu bem o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio. E foi graças às viagens que fazia como agostiniano que também conheceu o Brasil, onde esteve em incontáveis ocasiões visitando as cidades de Belo Horizonte, Goiânia, Campinas, Guarulhos, São José do Rio Preto, Aparecida, Curitiba, Ponta Grossa, Rolândia, no Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.
O frei Rodrigo Antonio, outro agostiniano que vive em Roma, explicou como se davam essas visitas à Argentina e ao Brasil. “Em Buenos Aires havia os colégios agostinianos, as paróquias, e tudo estava inserido dentro da igreja local, que era a arquidiocese. Então qualquer tratativa local tinha que ser feita com o bispo — nomear um padre, transferir um frade, tudo era com o cardeal Bergoglio”, explica. O frei Leandro Carvalho se lembra que o então padre Robert Prevost estava no Brasil quando houve sua iniciação na vida religiosa, numa cerimônia em Belo Horizonte. “Foi uma coisa muito bacana ele me entregando a cruz de entrada no noviciado, me desejando força, me desejando coragem”, recorda.
O próprio Prevost contou numa entrevista em 2023, em tom de brincadeira, que a relação com Bergoglio em Buenos Aires não era das mais tranquilas. “Conheci o papa Francisco quando ele era arcebispo de Buenos Aires. Como superior geral dos agostinianos, encontrei-me com ele várias vezes. E quando ele foi eleito, eu disse a alguns dos meus irmãos: ‘Bem, isso é muito bom e graças a Deus nunca serei bispo’”, afirmou, referindo-se à crença de que Francisco jamais o promoveria na hierarquia da igreja. “Não vou revelar o motivo, mas digamos apenas que em todos os encontros com o cardeal Bergoglio, não estivemos muito de acordo”, disse Prevost, sugerindo de forma bem-humorada que houve atritos. Prevost foi bispo em 2014 e cardeal em setembro de 2023 — durante o pontificado de Francisco.
O padre argentino Marcelo Sánchez Sorondo, que conhecia Bergoglio desde os tempos de seminário e comandou a Academia de Ciências e de Ciências Sociais do Vaticano durante o seu pontificado, viu o vídeo da entrevista, que viralizou depois da escolha do papa, e não duvidou por um segundo que ambos tenham tido diferenças, em razão da personalidade “porteña” de seu conterrâneo. “O Bergoglio sempre queria tudo do seu jeito”, disse, também em tom de brincadeira. Mas Sánchez Sorondo pondera que esse mesmo histórico entre ambos fez com que Francisco proporcionasse uma carreira meteórica a Prevost na igreja. “Acontece que o Francisco o tornou bispo, depois cardeal, depois cardeal-bispo. Ele não fez isso com os outros, que se dizem seguidores de Francisco. Não fez isso com o cardeal Michael Czerny, do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano, que se faz passar por humilde, mas é terrível. Não fez isso com os cardeais africanos”, diz.
O religioso nota num último ato de Francisco a indicação de que ele poderia ter uma preferência por Prevost, algo que pode ter sido percebido pelo cardinalato e incentivado uma votação mais ágil em seu favor. Em fevereiro, pouco antes de sua última internação, o papa nomeou Prevost cardeal-bispo, que é o mais alto grau hierárquico do colégio de cardeais. Apenas cinco dos 133 cardeais eleitores detinham essa denominação. Isso colocava Prevost no mesmo degrau que alguns dos favoritos para a sucessão, como o italiano Pietro Parolin e o filipino Luis Antonio Tagle. A diferença era que Prevost se tornara cardeal-bispo menos de dois anos depois de se tornar cardeal, enquanto os demais já estavam no topo da Cúria há muitos anos. “Foi aí que ele deu a entender a alguns que poderia ser seu candidato”, diz Sánchez Sorondo, para quem a eleição de um papa está normalmente subordinada ao pontificado anterior. “Quem se torna papa deve tudo ao anterior. Porque foi ele que o tornou bispo, o trouxe a Roma, o fez cardeal.”
No caso de Prevost, as digitais de Francisco estão por toda parte. Quando o argentino foi eleito papa, o americano era um padre que estava terminando seu segundo e último mandato como superior dos agostinianos, depois de doze anos na função. Prevost chamou Francisco logo no início de seu pontificado para rezar uma missa na basílica de Santo Agostinho, em Roma, numa cerimônia que marcaria a escolha do novo chefe dos agostinianos. Não tinha nenhuma convicção de que ele aceitaria, dados os muitos compromissos de início de pontificado. Mas Francisco foi. Ao final da celebração, disse a Prevost que descansasse por alguns meses, período em que ele retornou à sua cidade natal, Chicago. O descanso durou um ano: em 2014 o convocou para voltar ao Peru, onde ele havia iniciado sua vida religiosa. Queria que ele se tornasse administrador apostólico da diocese de Chiclayo. Ele aceitou. Um ano depois, foi nomeado bispo no mesmo local, onde ficou por nove anos.
Prevost se tornou cardeal depois do ocaso do colega canadense Marc Ouellet, acusado de assédio sexual contra uma garota de 23 anos, entre 2008 e 2010, quando era arcebispo de Québec. Em 2023, Ouellet presidia há treze anos um dos principais dicastérios da Cúria, que é o departamento que cuida das nomeações a bispos em todo o mundo. Resumindo: o futuro da igreja passava pelo seu crivo. Segundo o direito canônico, um cardeal só pode presidir um dicastério até os 75 anos, mas a regra costuma ser burlada. Coincidentemente, a Cúria só se lembrou de aplicá-la em 2023, justamente depois de saírem na imprensa as acusações de assédio. Ouellet tinha 78 anos. Como o canadense havia sido nomeado por Bento XIV, e era visto como expoente da ala conservadora, sua troca por Prevost foi vista pelos vaticanistas como uma vitória de Francisco — que tirava do cargo um antagonista e colocava em seu lugar um religioso mais alinhado à sua compreensão pastoral da igreja. O argentino não abriu investigação canônica contra Ouellet alegando que os indícios eram insuficientes.
Como passaria a comandar o dicastério para os Bispos, Prevost foi nomeado cardeal e trazido a Roma. Numa demonstração de sua evidente influência, despachava com o papa num horário fixo aos sábados, dia dedicado a assuntos mais privados. Era um de seus principais auxiliares. Sánchez Sorondo afirma que, num sinal da boa relação entre ambos, Prevost era o cardeal mais presente nas orações organizadas pelo Vaticano na Praça São Pedro em intenção da recuperação de Francisco, logo após sua última internação, em março. “Muitos cardeais vinham, mas o que era mais presente era o Prevost. Ele estava todos os dias.” Subordinada a Prevost na Pontifícia Comissão para a América Latina, área do Vaticano que coordena projetos na região, a teóloga Emilce Cuda evita referendar uma suposta preferência de Francisco. “Isso não termina bem. Ainda que Prevost fosse o escolhido do papa, que certamente o estimava muito, quem escolhe são os cardeais. O papa já estava morto. São os cardeais que escolhem por maioria. Essa ideia de haver um preferido deslegitima o conclave”, diz Cuda.
Os próprios agostinianos não acreditaram ao ouvir o nome de Robert Francis Prevost ser anunciado na Praça São Pedro, na noite de quinta-feira, 8 de maio. “Ele não estava nessas listas todas. Por isso para mim foi uma surpresa enorme, uma emoção para todos nós. Antes do conclave, a gente olhava para ele e pensava: ‘Seria tão bom se fosse um confrade nosso, um irmão nosso.’ Mas não alimentávamos isso”, diz Carvalho.
Poucas semanas antes, o então cardeal levava a vida de sempre. Saía de seu apartamento, na Porta de Sant’Anna, ao lado de uma das entradas do Vaticano, e ia jogar tênis na quadra dos Agostinianos. Também gostava de frequentar uma academia de ginástica próxima. Chegou a procurar a Ordem para saber se poderiam hospedar um padre e dois familiares durante três dias, em maio, em Roma. Fazia tudo isso por WhatsApp, aplicativo que continua usando desde que virou papa. Ainda não mudou de número.