Em um relato publicado no dia 16 de junho de 1975 no The New York Times, Dave Anderson escreveu: “Nos séculos passados, a maioria dos missionários na América usava colarinhos clericais, conhecidos como Blackrobes pelos indígenas. Mas ontem, o missionário do futebol vestia uma jaqueta vermelha de couro macio sobre uma camisa de gola alta branca, calças marrons largas e sapatos marrons e brancos.”
O jornalista se referia à chegada de Pelé ao Downing Stadium, em Nova York, para sua primeira partida no futebol americano. A presença do ícone brasileiro parecia mesmo uma missão de evangelização, uma vez que dos dias 14 de junho a 19 de julho de 2026, a América do Norte se torna o epicentro do esporte mais popular do mundo.
A primeira edição da Copa do Mundo de Clubes, no novo formato, se iniciou nesse último sábado em Miami Gardens. A famosa Copa de seleções acontecerá no meio do próximo ano, também na América do Norte, com a decisão marcada para East Rutherford.
Cinqüenta anos antes, Pelé, então com 34 anos, saiu da aposentadoria para apresentar o futebol aos norte-americanos. Embora o esporte já existisse nos Estados Unidos, a liga local era considerada fraca e com poucos torcedores, até que surgiu a oportunidade de trazer o maior jogador do mundo, disposto a voltar aos gramados.
Num esforço que reuniu personalidades como Henry Kissinger, o brasileiro recebeu argumentos para se recusar a ofertas europeias. Clive Toye, dirigente do New York Cosmos em 1975, destacou: “Eu disse: ‘Se você for para o Real Madrid ou Juventus, você ganhará apenas mais um campeonato. Mas se vier para o Cosmos, podemos conquistar um país’.”
Convencido por um atrativo contrato da Warner Communications, proprietária do Cosmos, Pelé aceitou. Enquanto a Folha informou que o valor do acordo foi de US$ 6 milhões por três anos, outros contratos relacionados a marketing e publicidade também foram definidos.
O pacto foi concretizado em Santos, em uma reunião de 13 horas, onde todos os detalhes foram acertados. O advogado Sérgio de Brito lembrou-se da conversa: “Eu disse para o Pelé: ‘Neste contrato, não podemos escrever apenas cocada, tem que ser cocada de coco de coqueiro’”.
Pelé receberia um valor que, nos dias de hoje, ultrapassaria os R$ 100 milhões. No dia 10 de junho, ele foi apresentado no famoso 21 Club, durante uma cerimônia concorrida, onde simulou a assinatura do contrato mais de 60 vezes, sendo que já havia oficializado o acordo nas Bermudas, um paraíso fiscal.
“Finalmente, o futebol chegou aos Estados Unidos”, exclamou Pelé, chamando Nova York de “capital mundial do esporte” e tentando se comunicar em inglês, enquanto cerca de 300 jornalistas lotavam o espaço, criando até confusões entre os cinegrafistas.
Naquela época, Pelé já havia sido tema de um editorial no The New York Times, que o descreveu como uma fusão de Muhammad Ali, Joe Namath e Catfish Hunter, ícones do boxe, futebol americano e beisebol, respectivamente. O jornal se sentiu compelido a explicar aos leitores o que era o futebol, descrevendo-o como “o vovô dos jogos, que remonta ao tempo em que a bola era o crânio de um rival arremessado entre postes de cavernas”.
Agora, restava mostrar o jogo na prática.
Durante seu primeiro treino, Pelé encantou os presentes com um gol de bicicleta, aumentando as expectativas para sua estreia no dia 15 de junho. A CBS adquiriu os direitos do amistoso entre o Cosmos e o Dallas Tornado por US$ 50 mil, distribuindo a partida para 13 países, com as cotas de patrocínio sendo rapidamente esgotadas.
Com sua jaqueta vermelha, o ícone brasileiro chegou ao Downing Stadium, que tinha capacidade para pouco mais de 20 mil espectadores, adornado com bandeiras do Brasil e faixas comemorativas como “Viva Pelé”. O público oficial foi de 21.278, incluindo o prefeito Abraham Beame.
Flávio Adauto, enviado especial da Folha, indicou que “Nova York estava preparadíssima para testemunhar a estreia do futebol nos Estados Unidos”. Pelé prometeu jogar apenas 45 minutos, mas, após ficar em desvantagem de dois gols, retornou para o segundo tempo, contribuindo decisivamente para o empate de 2 a 2.
Ele assistiu o atacante israelense Mordecai Shpigler e, após receber um cruzamento dele, marcou de cabeça, superando o goleiro Cooper. “Com um toque de cabeça, ele fez um gol que foi celebrado como algo raro e valioso”, disse Adauto.
Após a partida, ele deu uma entrevista confusa com um megafone, expressando estar “satisfeito com tudo” e surpreso por ter jogado 90 minutos. Em inglês e português, enfatizou que estava longe de sua melhor forma, enquanto um torcedor na arquibancada gritou: “Que é isso, negrão? Você está em forma, melhor que todos juntos”.
De acordo com os repórteres do Times, Pelé tocou na bola 76 vezes em 90 minutos, perdendo-a apenas cinco vezes, o que, embora não tenha representado uma métrica de performance, impressionou os leitores americanos. “Ficaram registradas as estatísticas de seus movimentos”, observou Paulo Francis na Folha, acrescentando: “Esperamos que essa moda não pegue no Brasil”. Contudo, pegou.
O futebol, de fato, ganhou algum espaço nos Estados Unidos. Pelé atuou por três temporadas no Cosmos, que se mudou em 1977 para o Giants Stadium. Diante de um público recorde de 77.691 pessoas —superando a capacidade oficial de 76 mil do estádio—, ele disputou sua última partida, deixando a famosa mensagem: “Love, love, love”.
A média de público na liga americana subiu de 7.597 por jogo em 1975 para 13.584 em 1977, quando o Cosmos venceu o campeonato. No entanto, o país não estava preparado para o futebol profissional, e a liga entrou em colapso no final da temporada de 1984, mesmo que as sementes já estivessem plantadas.
Os Estados Unidos foram anfitriões da Copa do Mundo de 1994 —vencida pelo Brasil, assistida por Pelé— e retomaram sua liga profissional em 1996. A MLS (Major League Soccer) hoje atrai estrelas veteranas, como o argentino Lionel Messi, que atua no Inter Miami ao lado do uruguaio Luis Suárez.
O Inter Miami é uma das equipes participando da atual Copa do Mundo de Clubes, juntamente com o Seattle Sounders e o Los Angeles FC. Embora essas equipes não tenham a qualidade das grandes potências europeias, e o esporte não goze da mesma popularidade que o futebol americano, 50 anos após a chegada do “missionário de jaqueta vermelha”, há um futebol de boa qualidade nos Estados Unidos.