A Inglaterra é amplamente reconhecida como o berço do futebol moderno desde o século 19. As raízes do esporte remontam ao “mob football”, um jogo caótico e violento que era popular nas Ilhas Britânicas durante a Idade Média.
Nessa prática, centenas de jogadores de vilarejos vizinhos formavam dois times e se juntavam em um tumulto para disputar uma bola — frequentemente uma bexiga de porco inflada. As disputas, repletas de empurrões, chutes e até mesmo brigas, podiam se estender por horas ou até dias, sem limite de tempo, com uma única regra: a proibição do uso de armas.
O panfletário puritano Philip Stubbs denunciou essa brutalidade em um panfleto de 1583 chamado “The Anatomie of Abuses”, referindo-se ao jogo como uma “prática sangrenta”. Em 1863, para regulamentar e organizar o esporte, um advogado inglês elaborou as primeiras regras, adotadas pela recém-criada Associação de Futebol em Londres, composta por ex-alunos de renomados internatos. Esse evento cimentou a reivindicação da Inglaterra como pioneira do futebol moderno.
Entretanto, Ged O’Brien, professor aposentado e fundador do Museu de Futebol Escocês em Glasgow, argumenta que essa narrativa é infundada. “Na verdade, durante séculos, o futebol tem sido jogado em diversas cidades e aldeias da Escócia – não o mob football, mas o futebol verdadeiro”, afirma.
No mês passado, O’Brien e uma equipe de arqueólogos descobriram o que acreditam ser o campo de futebol mais antigo conhecido, localizado em uma fazenda do século 17 na cidade de Anwoth, em Kirkcudbrightshire, Escócia. Essa descoberta oferece uma evidência física de um campo de jogo organizado em um período com poucos relatos escritos sobre as atividades recreativas da classe trabalhadora.
Segundo O’Brien, “Nossa descoberta poderá mudar a perspectiva dos historiadores do esporte sobre as origens do que chamamos de belo jogo”.
As primeiras pistas sobre a atividade foram encontradas em uma carta do Rev. Samuel Rutherford, um clérigo presbiteriano que pastoreou na Anwoth Old Kirk de 1627 a 1638 e, posteriormente, foi professor de teologia na Universidade de St. Andrews. Ele expressou preocupação com os paroquianos que jogavam “Foot-Ball” nos domingos em uma localidade chamada Fazenda Mossrobin.
“Como ministro, Rutherford desejava que a comunidade participasse dos serviços religiosos, acreditando que o tempo dedicado a jogos era tempo perdido”, explica O’Brien. Para impedir isso, ele mandou que construíssem uma barreira de pedras no campo. “Era uma espécie de placa rústica de ‘Proibido Jogar’, projetada para dificultar as partidas”, acrescenta.
O’Brien e a equipe arqueológica investigaram a área da fazenda, agora utilizada como pastagem para cervos, e encontraram uma linha de 14 grandes pedras cortando uma seção plana de 85 metros de comprimento por 45 de largura, um pouco menor que um campo de futebol americano.
De acordo com Kieran Manchip, oficial de projeto da Archaeology Scotland, as pedras não se encaixam na característica de uma estrutura agrícola medieval ou pós-medieval, e não aparecem em mapeamentos históricos com tal função.
Para entender a estratigrafia do local, a Archaeology Scotland abriu dois poços de teste, revelando que as pedras foram colocadas de forma solta sobre um solo mais antigo. “Essas intervenções mostraram que as pedras não serviam para demarcar uma fronteira, terras cultiváveis ou para controlar o gado”, disse Manchip, sublinhando que a análise sugere que o arranjo data de cerca de 400 anos, coincidindo com as observações de Rutherford.
Manchip acredita que as tradições sobre a interação de Rutherford com jogadores de futebol na Fazenda Mossrobin são consistentes com o que foi encontrado na paisagem e não há razão para duvidar da veracidade da história de um futebol organizado na região.
Contudo, essa interpretação é contestada, inclusive por entusiastas do futebol inglês. Steve Wood, administrador da Sheffield Home of Football, afirmou que não é possível determinar que tipo de “foot-ball” era jogado em Mossrobin. Fundado em 1857, o Sheffield FC é reconhecido pela FIFA como o clube de futebol mais antigo do mundo.
Wood argumenta que, para um entendimento mais claro sobre o que ocorreu no local, e como isso se relaciona com o futebol moderno, pode haver um acordo sobre a importância histórica do campo.
O’Brien, por outro lado, contesta essa visão. “Os jogos eram realizados aos domingos, então não poderiam ser muito violentos, uma vez que os participantes precisavam trabalhar na segunda-feira. Sem trabalho, você morria de fome”, destaca.
Ele vê a rejeição de Wood como mais uma manifestação do chauvinismo inglês. “Se você quer que uma nação inteira acredite que seu povo é inferior e ignorante, precisa que eles desconheçam as grandes conquistas de seus antepassados”, diz O’Brien com convicção. “O jogo jogado em Mossrobin foi o avô do futebol moderno. E ele era escocês.”